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Ode Marítima (2007)

  • Ode Marítima: notas sobre a encenação de 2007

    Na altura em que escreveu Ode Marítima, (por volta de 1915) Fernando Pessoa estava embrenhado numa especulação estética que marcaria decisivamente, não só a sua obra, mas também, de várias formas, a dos seus compagnons de route. Durante um curto período produziu esse processo vários -ismos que foram sucessivamente postulados, desenvolvidos e transformados em corpo constituinte de experiências rápidas ou heterónimos variadamente espessos e voláteis. Sucederam-se discussões, artigos e especulações em cujo contexto Apontamentos para uma Estética não-aristotélica (publicado em Athena, nº 3 e 4, Lisboa, Dezembro de 1924 e Janeiro de 1925) é sem dúvida um texto-síntese, marcante e referencial.

    Com o mundo mergulhado na I Guerra Mundial, Sá-Carneiro e Santa-Rita em Paris e Almada por aí, Pessoa era, em Lisboa, a antena que sintonizou e retransmitiu a pulsação do mundo, e garantiu que a modernidade - uma modernidade tão peculiar, afinal - passou por cá. Em 1916 ainda não havia coisas tão banais como são hoje o cinema ou a aviação comercial, ainda não tinha acontecido a revolução soviética nem, no nosso caso, o Estado Novo, mas estavam em curso acelerado as mudanças de paradigma que estiveram na base da vertigem em que se transformou o Século XX. Na verdade, o reequacionar dos fundamentos do homem na nova sociedade, a par com a enorme massa de conhecimento científico entretanto adquirido, foi o que esteve na origem da intensa e fértil discussão que ocupou a geração de artistas do princípio do Século XX não só em Lisboa, mas também em Paris, Roma, Madrid, Viena, Berlim, Moscovo...

    A peculiaridade deste período de especulação estética consiste na projecção em obra do reequacionar dos fundamentos da contemporaneidade, projecção tão forte que, no caso de Pessoa, conduziu à existência de personalidades que defendessem e desenvolvessem tendências subtilmente diversas mas densamente autónomas. Antecipando visões conceptuais imprescindíveis à produção artística futura, a visão futurista partiu da revisão ou, melhor, actualização do reconhecimento da posição do indivíduo na sociedade para a dedução de postulados e teoremas para uma fundamentação estética, autónoma e independente, adequada aos homens dos novos tempos. É essa extraordinária capacidade de objectividade demonstrativa que, no caso de Pessoa, vem a gerar os heterónimos que, não só discutiam em profundidade a origem da arte poética, como se digladiavam na sua perfeição, fornecendo a Pessoa a matéria necessária para o exercício da crítica e da demonstração estética que sempre cultivou. Vista assim, a heteronimia pessoana poderia ser o testemunho de um processo de especulação estética extensa e disciplinada, praticada e publicada com confessada urgência na conjuntura das revistas de que era editor. Vista assim, a intensa produtividade que essa época conheceu é, também ela, expressão clara e patente de um intrínseco ímpeto modernista, é certo, mas, sobretudo, experimentador, objectivador.

     

    Para além da literatura

    À luz dos Apontamentos... a Ode, mais do que um poema, é um texto canónico, pois resulta da aplicação de regras de composição e produz um sentido preciso, metafisicamente para além das palavras que o suportam. É certo que os Apontamentos... enquanto fundamento de uma teoria estética - que são sem o ser - poderiam ser longa e profundamente discutidos; mas é antes como manual prático que a sua síntese programática se manifesta, a um tempo poderosa e contemporânea. A ideia de uma estética não aristotélica é fundamental para que o conceito operacional de belo possa ser alargado, como é o caso nesta altura em que a integração conceptual da máquina no ecossistema humano engendra novas emoções estéticas e gera uma nova espécie de romantismo, um humanitarismo moderno, nem tísico nem linfático mas antes enérgico e rejubilante, cuja designação mais genérica é futurismo.

    Como texto, Ode Marítima funda-se em processos de composição estruturados e pictóricos, como o fariam Santa-Rita e Amadeo, se tivessem escrito. Ode Marítima tem um relação absolutamente nova com a mimesis, com o modo de usar o mimético na criação artística, como tinha sido praticado até aí. Por isso consuma uma total rotura conceptual com a produção literária dos autores que antecederam Pessoa, como é o caso de Cesário Verde, para citar apenas um, evocado na própria Ode. Para além da literatura, a Ode Marítima é um texto intencionalmente estruturado, claro e dinâmico. Mais do que um poema, Ode Marítima é um ensaio sobre estética, uma estética da inteligência e da voz naquilo em que a voz é a palavra inteligível da inteligência-em-corpo; uma lógica de composição «modernista», desenvolvida disciplinada, metódica e aplicadamente. Há aqui, de forma clara e iniludível, uma teoria da composição poética independente e autónoma, que determina os elementos formais do poema. Em toda a composição da Ode, esses processos de composição estruturados antecipam uma lógica de montagem fílmica, ou musical, que extrapola extraordinariamente a própria retórica da construção poética, numa formulação estética que rompe o «processualismo» formal da escrita.

    Há um processo fragmentário e síncrono na composição futurista (e claramente na que resulta da engenharia verbal de Álvaro de Campos), uma explosão dinâmica de sinais, de formas e de ritmos, que encontraremos mais tarde no cinema, das sequências montadas por Eisenstein nos filmes (eles também anteprojectos conceptuais) que produziu imediatamente após a revolução de 1917, ao vj-ing contemporâneo. O sentido global do texto resulta pois de um processo de montagem cinematográfico avant la lettre (que também faria lembrar Goddard, se quiséssemos insistir na comparação) fundado na permanente relativização de sentidos que cada novo bloco-ideia de texto introduz. Como num texto chinês composto por caracteres-ideias (ideogramas), cada novo bloco de sentido «afina» ou «recoloca» ou «torna precisa» a formação do sentido global do texto, criando assim uma «peça» intensamente dinâmica que se vai desdobrando em sentidos ao longo da sua duração. A partir de construções rítmicas, de saltos no tempo, de mudanças de velocidade, de sequências vertiginosas de opostas afinidades a Ode estala sonora na linha temporal dos seus sentidos.

     

    Uma construção cénica

    Ode Marítima não é um texto dramático no sentido em que não tem uma acção que siga a regra do texto teatral. Nem personagens. Nem acção. Mas é um texto com uma estética implícita, precisa, quase geométrica, intensa, reveladora. Interessa, portanto, que nos interroguemos sobre como deduzir regras de composição e, também, sobre como abordar a construção de um nexo elocutório que, na sua simplicidade, represente o texto mais como um momento em que ele se produz como entidade-viva do que como um discurso normativo sobre a forma do texto poético. A associação íntima inteligência|voz é um retomar da questão do próprio fundamento da linguagem, mas aqui desviada para o fundamento da estética, entendida num sentido lato, não restrito à ideia de forma visual. A Ode Marítima masteriza a relação entre ideia e expressão. A escolha de cada palavra, as sequências, os ritmos, as sonoridades - ou os resultados sónicos de tudo isso, que são o que realmente existe, o que realmente chega ao espectador, ou ouvinte, ou o-outro-que-assiste, a testemunha.

    Um actor é um especialista em dar corpo às palavras, em revelar os seus sentidos. O seu trabalho começa na leitura, nas leituras, na maceração das palavras e dos seus sons e articulações e progride até que o texto se revela como entidade-coisa independente e segura. É este trabalho que nos faz acreditar que talvez toda esta construção possa prolongar-se numa existência oblíqua, num artefacto cénico igualmente fingidor, impreciso e imaterial.