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Wrong Target #4 - presa por um fio

  • wrong target #4 - presa por um fio

     

     

    Exterior. Rua.

     

     

    Cena #1

    – Como é evidente não me ligas. Nunca me ligas.

    – (...)

    – Não é para chatear. É só para dizer que tinhas razão quando me avisavas que corro por minha conta e risco. Preparei-me para isso, mas a minha corrida pouco mais te parece do que uma mania, uma coisa doentia, como sugerem as opiniões que levas em conta. Dói muito. Talvez não saibas, mas não tenho nada de masoquista. Portanto isto dói. Dói.

    – (...)

    – Claro que não podes fazer nada. Não há nenhum espaço na tua cabeça onde possa caber qualquer coisa minha que não te incomode. Vejo como a agressividade salta e a controlas nessa mesma fracção de segundo. (não vês os teus olhos, mas eu vejo). Não tens espaço, não tens nenhum desejo onde eu tenha lugar. Portanto é claro que não podes fazer nada...

    ... (tempo. Faz menção de falar. Corte antes que fale)

    (corte) Como sabes, sempre que ouve a tua voz o meu coração bate mais depressa; provavelmente, parará antes que volte a ouvi-la. Amo-te.

    – (corte) Porquê? Não quero ouvir.

    – É evidente que não me amas. Portanto não tenho mais nada para dizer.

     

     

    Cena #2

    – (corte) Não quero ouvir-te.

    (tempo.)

    – sim.

    – (...)

    – sim.

    – (...)

    – estou na rua.

    – (...)

    – Sim, vim telefonar à rua.

    – (...)

    – (imenso tempo a ouvir uma explicação. Faz menção de falar. Finalmente fala) Não quero ouvir mais. Aliás, podias...

    – (corte)

    – Não estou nessa, não me apetece: o desencanto e a indiferença, não pertencem à natureza, nem à nossa, nem à das coisas. Podemos estar ao abrigo de tudo. Podemos guardar a emoção na despensa e afogar a memória nas brumas do tempo, e ter um sono tranquilo, imperturbado, sem sonhos. Mas, mesmo assim, faltam coisas. Faltam. A rarefacção está lá, está por todo o lado. Cresce. Vês como sou lúcida?

    – (...)

    – Tinhas evitado essa conversa toda se tivesses ouvido o que eu disse. Não quero que voltes atrás, não quero ouvir coisas simpáticas. Não faz sentido. Essa conversa é completamente deslocada.

    – (corte)

     

    - Sim, deslocada. (retoma) não é preciso nada disso: basta que nos ignoremos, fazes como sempre. Não custa nada – (sedutora) apenas manter o estilo, a elegância, o charme – tudo qualidades que tens em abundância.

    – (...)

    – (mesmo tom) portanto a reacção típica: um ataque de modéstia... porque é que te fazes modesto? Commigo? Vê bem, não é caso para tanto...

    – (...)

     

    Cena #3

    – (...)

    – não me digas...

    – (...)

    – quem?

    – (...)

    – Não. Não os tenho visto. Mas também ninguém se vê. Só quem está muito perto.

    – (loop ad-lib) Ouves as sirenes? Estás a ouvir as sirenes? Os aviões e as sirenes. É real, mas é como se não fosse.

     

    CENA #4

    – Surpreende-me sempre a reacção das pessoas quando se começam a ouvir as sirenes. Não andam mais depressa. Não dizem nada. Continuam a fazer o que estavam a fazer, olham ocasionalmente para o céu à espera de aviões, ou apenas detonações... nada. Quando as bombas rebentam, o meu coração mexe-se. Está para além do meu controlo. Não é que não tenha medo, mas antes de ter medo já o corpo está a reagir, não consigo controlar.

    – (...)

    – Penso mais no som. Penso em como se propaga pelo ar, a que velocidade, como embate violentamente nos vidros e nos edifícios. Como viaja pelo ar e pelas ruas. Consegue ouvir-se em quase todo o lado, independentemente da distância a que se encontra o alvo. Quando é perto ouve-se tão nítida e profundamente que parece que foi aqui. Seja onde for o bombardeamento nunca se sabe de onde é que veio.

    – (loop ad-lib) Ouves as sirenes? Estás a ouvir as sirenes? Os aviões e as sirenes.

     

    Cena #5

    – (...)

    Não passo nas ruas que foram bombardeadas ou nas que têm edifícios governamentais. Não me sinto segura, mas também quero ver o que fizeram.

    – (...)

    – Sim. Distante de qualquer alvo militar. Mais de 40 pessoas foram feridas ou morreram, não sei o número exacto. O número não é importante. O que é importante são os alvos que eles atingem. Se eu soubesse o nomes das pessoas que perderam a vida, escrevê-los-ia, porque quando lemos os nomes das pessoas que morreram ficamos mais próximos delas. Quando se ouve o número é diferente. Os número não são vidas.

    – (...)

    – Vivo estes dias como um fantasma. Pairo sobre eles como se a vida tivesse parado.

    – (...)

    – Não consigo encontrar um final lógico. Quero que tudo isto acabe. E que acabe rapidamente. Quero dormir descansada outra vez.

     

    sequência #1

    Então nada de novo. Nem mesmo uma pequena esperança. Nem um pequeno sinal. Portanto sei o que sei. Sei o que sei. Não é mau.

     

    sequência #2

    Não penso nisso. Vendo bem, não sei mesmo em que pensar. Porque é que uma pessoa acaba sempre a fazer coisas em que não tinha pensado? Não é só as coisas serem o que são, é também serem como são. Isso deixa-me perplexa. As coisas serem como são é o que as torna tão únicas. Casos particulares. Mas vistas de fora as coisas são iguais, nunca se percebe que há uma mais importante.

     

    sequência #3

    A ansiedade é uma serpente que vive no peito e se mexe devagar, desde a ponta da língua bífida ao extremo fino da sua cauda. É um novelo convulsivo que não muda de tamanho.

     

    sequência #4

    Digo sempre as mesmas coisas. Passo todo o tempo a ouvir a mesma voz,

     

    sequência #5

    Compreendi coisas que não compreendo. Não as sei mais do que as sabia, mas sei-as melhor.

     

    sequência #6

    Não sabes como é triste a minha tristeza. Não sei como te explicar todas as dores que me doem. Não digo isto para te mover. Para mover tudo isso é, aliás, muito pouco.

     

    sequência #7

    Nunca quis acreditar que o grande amor não existe. Mesmo agora, que estou convencida, não acredito. Pensei que, por se tratar de nós e do que vivemos, tudo seria especial, único. Porém, vim a compreender que tudo é absolutamente normal, e que o mundo não tem o que quer que seja de especial dedicado a nós - o que pode querer dizer que, no fim de contas, não se passa nada porque não há nada para se passar.

     

    sequência #8

    Compreendo que não me ames, por várias razões: porque não se ama por decreto, porque só se ama quando se tem vontade de amar, quando se está para aí virado, quando se deseja. Mas, sobretudo, porque não me amas - e isso é o género de coisa que se vê logo.

    sequência #9

    Digo isto sem pejo e sem peso, como um facto da vida. Nada, portanto, me anima a pensar outra coisa, a ver o que não é - como se houvesse alguma coisa por trás, escondida, que não se visse, mas fosse...

     

    sequência #10

    Caem pedras

    o barulho esmaga.

    Núvens feridas

    que pesam

    como aves cansadas.

     

    sequência #11

    Tudo o que posso fazer é pouco, e pouco não é, de facto, muito. Aprendi a indiferença e o desencanto, e a viver com eles como se vive com uma roupa nova, de que gosto. Há coisas que desligam todos os dias. Há buracos cada vez maiores. O passado é esponjoso e desfoca-se.

     

    sequência #12

    Onde estás, onde paira a tua essência? Se não me chamas, como te ouço? O que ouço então quando ouço? A felicidade é uma memória remota, impávida, alheia.

     

    sequência #13

    Vivo estes dias como um fantasma. Pairo sobre eles como se a vida tivesse parado.