alberto lopes :: base de dados - espetáculos

Cenas de Uma Execução

  • sobre as «cenas...»

    Texto concebido para o programa do espetáculo "Cenas de Uma Execução", no Teatro Nacional D. Maria II.

     

    Teatro radiofónico, teatro de voz, de vozes. A sonoplastia é uma espécie de cenografia radiofónica. O som tem um grande poder de indução de imagem. É por esse motivo que os ouvidos estão preparados para completar (ou substituir) os olhos.

    Este espectáculo é a «adaptação a cena» de um script radiofónico e, no entanto, o teatro está lá em todo o seu esplendor. Do «radiofónico» retivemos os efeitos dramáticos da sonoplastia. Portanto o universo do rádio: ouvir rádio, ouvir histórias. O rádio-contador-de-histórias.

    Uma história é, antes de mais, a descrição de uma possibilidade. O facto de uma coisa poder ser descrita significa que ela foi pensada. Logo possível. Uma pedra subindo do chão, ignorando a lei da gravidade é qualquer coisa que não existe. No entanto é possível imaginá-la e descrever a cena, e também fazê-la inter-agir com outras possibilidades, como, por exemplo, a situação em que alguém assiste à subida da pedra e integra a situação no conjunto da sua experiência existencial. Podemos estabelecer um quadro de reacções típicas de um indivíduo «médio» a uma situação bizarra, como a descrita. Podemos decidir que um «caso particular de indivíduo» reagiria a tal cena com espanto, enquanto que outro teria uma reacção de fuga motivada pela impossibilidade de integrar no seu quadro de referências a informação recebida. Podemos portanto, e não obstante ser sempre completamente claro que se trata de uma situação impossível, torná-la viável pela utilização da empatia.

    Há assim três espécies de histórias: as que aconteceram, as que não aconteceram mas poderiam ter acontecido e as que, de todo, são impossíveis. Por uma qualquer espécie de paradoxo estas últimas, as impossíveis, atraem o público de um modo especial: o prazer de contar a história induz no ouvinte uma reacção de empatia que cria as situações de comunicação profunda que permitem seguir um nexo «impossível», tornando assim possível uma impossibilidade. A base do teatro é, pois, esta empatia de «contador-de-estórias». Portanto, o teatro é uma espécie de máquina-de-fazer-ver-coisas, cujo funcionamento é absolutamente elementar: um grupo de pessoas (performers) propõe-se maravilhar outro grupo (público) com «uma grande invenção» – e, em certos casos, chega a consegui-lo.

    «Cenas de uma Execução» pertence ao terceiro grupo: é uma história das boas, das impossíveis, não só porque nada daquilo aconteceu como, e sobretudo, porque na altura a que se referem os factos descritos, o pensamento sobre tais assuntos não poderia ser formulado daquela maneira.

     

    onde está o drama?

    Este é um texto «neo-brechtiano». Antes de mais nada porque toda a construção do texto conduz para um posicionamento da ordem do racional/político e não da ordem do emocional/individual que é típico de outros contextos. (Mas isto seria outra especulação e podia ser interessante fazê-la porque, no fundo, para além do imediatismo político dos «postulados brechtistas» há qualquer coisa que não devia pura e simplesmente desaparecer só porque já não há Muro de Berlim.)

    Visto como texto de teatro «Cenas de uma Execução» propõe uma revisão dos processos de narração e distanciação, de construção da expressividade e, finalmente, de estética teatral: ritmo, fraseado, acting, movimento, etc.: não estamos em presença de um «teatro de sentimentos» expostos no sentido «trágico» do termo, mas de um «teatro de ideias» em que apenas é enunciável a «encenação» das vidas como base de sobrevivência, pois mais do que a sobrevivência biológica, a nossa sobrevivência é, sobretudo, acting social.

    É por isso que esta peça por vezes parece uma comédia. Mas não é. É tão comédia como um cego que choca num poste. É um drama. E o drama consiste em quê?

    Por certo que não é em ter razão, ou conseguir pintar a Batalha de Lepanto. Por certo que não é em conseguir por ser mulher contra uma cultura «masculina». O problema está no acting social visto que as possibilidades jogam-se (e esgotam-se) no modo de representar social que cada personagem gere. É esse o obstáculo a vencer, e esse problema é tanto de Galactia como de Urgentino. De facto, para além de supostas e obscuras motivações pessoais, é isto que os torna intrinsecamente cúmplices. Ambos têm de encontrar resposta para o mesmo problema – representar o que a batalha representa enquanto valor de uso social –­­ pois só isso justifica o alto preço que se paga por uma batalha – e, já agora, por uma pintura. O universo político e o universo artístico cruzam-se justamente na medida em que existe uma mensagem.

    Galactia afronta o poder no momento em que este pretende estabelecer a sua mensagem tornando-se assim, de facto, a personagem do não-poder. Todos os outros personagens ou o exercem, ou o aceitam. Galactia pretende existir fora desta lógica, mas a «máquina social» de que ela é parte não o aceita. Na medida em que se distancia da lógica da «máquina», Galactia incorre em falta: deixa de ser capaz de justificar.

     O drama consiste portanto em conseguir encontrar (ou não) um modo de justificar.

     

    Que moral deduzir desta história?

    O que fica claro é que o social é uma espécie de máquina, cujas acções podem ser consequentes ou inconsequentes, de acordo com a capacidade de as justificar, de lhes dar sentido, de as integrar na lógica da constante aquisição – uma lógica que justifica, tanto o aperfeiçoamento, a civilização e a exegese, como a propriedade, o atropelo ou o consumismo.

    A «máquina» funciona de acordo com regras precisas e uma moral explícita: justificar o que for preciso para que tudo continue a ser o que é. De facto, em «Cenas de uma Execução» toda a gente se justifica – como se a expressão da auto-consciência fosse a justificação, a justificação de qualquer coisa que está sempre ligada ao seu ser-agir social.

    É por isso também que nunca saberemos o que Galactia queria dizer mesmo quando respondeu «sim» ao convite do Doge.