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O Lagarto do Âmbar

  • Da Existência de Meios Tecnológicos à Criação de um «Objecto Artístico»

    Este é um texto reflexivo, elaborado durante o processo de montagem do espectáculo O Lagarto do Âmbar, (ACARTE 1987) segundo o script homónimo de Maria Estela Guedes. Ao proceder à sua revisão para publicação, optou-se por, tanto quanto possível, generalizar a experiência criativa, tornando o texto menos dependente do espectáculo em questão. (Lisboa, 1989)

    Este texto foi originalmente publicado em "Arte e Tecnologia", ed. Fundação Calouste Gulbenkian.

     

     

    Da Existência de Meios Tecnológicos à Criação de um «Objecto Artístico»

    In Memoriam M. M. A. P.

     

     

     

    sinopse

     

    O próprio tema «Da existência de meios tecnológicos à Criação de um objecto artístico» presume um percurso. Presume que a existência dos meios tecnológicos é anterior à Criação, à própria génese da obra de arte. Na verdade, pode dizer-se que o nosso tempo é o tempo em que nasceu a Arte Tecnológica, e que existe uma tipologia de «objectos artísticos tecnológicos», ou porque requerem, ou porque exploram tecnologias, e que, em qualquer dos casos, delas dependem em absoluto.

    Por seu lado, a ideia de explorar as tecnologias tem também implícito um «percurso», a mudança de estado (ou transmutação) da tecnologia em sentido, potencialmente capaz, como qualquer outra forma de expressão, de compreender o seu objecto e transferir significados e, portanto, de se constituír como media.

    Tal como se passa com os materiais tradicionais, a exploração das tecnologias pode ser feita no sentido da sua desfuncionalização, ou inversamente. Ou simultaneamente. Porque um dos factores que está na génese da criação artística é, indubitavelmente, o fascínio que os materiais exercem sobre o artista, a que, evidentemente, está associado o «acto de poder» que consiste em dominar ou, melhor, moldar a «possibilidade de existência» dos materiais (ou tecnologias) de que se serve. Os meios tecnológicos são assim colocados no plano «tradicional» dos materiais, não necessariamente para os substituír, mas sobretudo para aumentar a sua variedade e o leque das opções formais e expressivas que podem ser «geridas» num determinado percurso artístico.

     

    A ideia procura a forma

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    fotograma do video

    fotograma

    fotograma do video

    fotograma do video

    fotograma do video

    fotograma do video

    fotograma do video

     

    fotogramas do video de «O Lagarto do Âmbar»: a «distorção» tecnológica como «paintbox» (antes da era digital)

    No processo de manipulação de materiais associado à criação artística, existe um encadeado de coerências que gera o objecto artístico. A manipulação consiste num conjunto de acções não lineares de preparação dos materiais, de «maceração», que se sucedem obedecendo a um ritmo ou a uma fluência interior, e cujo objectivo está contido na ideia de «dar forma a um corpo» - passe o paradoxo. Deste ponto de vista, os materiais (ou tecnologias) só podem ser encarados como meios para a obtenção de um determinado resultado, e jamais como o objectivo estrito da criação, mesmo quando a sua utilização obriga o artista a aceitá-los ou, em limite, a compreendê-los. Apesar de tudo, uma particular necessidade de atingir determinado grau de «espectacularidade» pode estar na origem de um desenvolvimento tecnológico particular, do mais elementar gadget, à mais delicada engenharia cibernética. Mas, mesmo quando a necessidade de uma determinada tecnologia decorre da necessidade de «dar forma a um corpo», o seu desenvolvimento particular para um objectivo específico será necessariamente resultado de investigação tecnológica, de bases científicas: é trabalho de técnicos e investigadores, e não de artistas.

    Um objecto artístico resulta sempre da incorporação de uma tecnologia concreta num discurso estético e existencial pré-existente - uma poética. Também pode acontecer o contrário: a «dramatização» de uma determinada tecnologia, pela «distorção» da sua utilização típica, pode, só por si gerar conteúdos emocionais e uma qualquer ordem de significação, que será reconhecível à posteriori, e incorporada (aceite) pelo objecto artístico, como se sempre tivesse existido. De facto, qualquer que seja o resultado objectivo do trabalho de um artista, ele consiste sempre na manipulação de materiais até à sua "transmutação simbólica", e pressupõe o emprego e o domínio de técnicas especializadas. Esse domínio processa-se, porém de um modo não imediatamente tecnológico: por exemplo, um escultor interessa-se pelo resultado da pancada de uma massa na pedra por intermédio de uma ferramenta específica, e não pelo processo de mineração que produz o metal; para o pintor, importa a cor, a textura e a fluidez da tinta (ou seja, a sua possibilidade de suportar/provocar cargas emocionais), e não a composição química das anilinas. A tecnologia e as normas tecnológicas interessam o artista, apenas na medida em que essa for a 'única' maneira de obter ou trabalhar uma variável emocional particular da sua obra, e, portanto, lhe proporcionam maissouplesse expressiva e, um maior domínio sobre os conteúdos da sua obra. É isso a aprendizagem e, particularmente nas disciplinas artísticas, importa aprender a criar esse domínio, qualquer que seja o material com que se trabalha. A aprendizagem do processo de domínio do material - correntemente chamado técnica, ou métier - é, em essência, um trabalho de experimentação catalogada, em que se relacionam (e memorizam) séries de causas e efeitos. Por exemplo, o efeito que uma determinada força, conduzida por uma ferramenta adequada, produz na superfície do mármore; ou o resultado da atribuição de um determinado valor à frequencia do LFO na característica "vibrato" de um som sintetizado; ou a projecção emocional da repetição de estímulos determinados, etc.. Porém, a criação artística só existe a partir do momento em que esses saberes atomizados forem organizados linguisticamente, no contexto de um sistema ideológico. A utilização artística de um qualquer artefacto tecnológico, e a sua abordagem técnica ou científica, diferem profundamente pois tanto as metodologias como as motivações e os objectivos são diferentes.

    Pode porém dizer-se que há uma escala ou, melhor, uma espécie de lugar geométrico em que artista e experimentador são sinónimos reais. Mas, geralmente, o cientista tem uma previsão do resultado da sua experiência: explora hipóteses que se verificarão ou não, e de cujo encadeado depende um objecto real qualquer, igualmente previsível. Geralmente, um artista não pode prever (antever) o resultado do seu trabalho dessa maneira. Quanto muito, poderá fazer uma previsão quântica, apontar uma zona de resultados, já que, em princípio, nenhum artista se furta à volúpia da manipulação dos materiais, e ao prazer da impossibilidade de aplicação extensiva do princípio da causalidade. É assim que a tecnologia fascina um artista: - tanto pelo que ela faz, como por aquilo que ela não faz, ou não pode, ou não deve fazer.

     

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    A construção de um espectáculo com a utilização alargada de meios tecnológicos que «distribuem concorrentemente» as várias linhas de sentido, conduz necessariamente ao "género" a que se convencionou chamar multimedia. A ideia base do multimedia não tem, porém, nada de essencialmente novo ou diferente: tanto a Música, como o Teatro, conheceram já fases em que se assumiram como linguagem de síntese, sem que, tenham persistido alterações radicais no que respeita ao seu métier específico.  Entendido como espectáculo, o multimedia é ainda uma forma não inteiramente dominada, sem tradição de métier, mas com um potencial polissémico grande, qualidade que torna este «género» verdadeiramente atractivo e aberto à experimentação formal. A questão que subsiste é a elaboração, com carácter de permanência, de uma linguagem de síntese e do processo de criação associado, preferencialmente redutível a um A-Z do multimedia. Falta portanto (faltará?) a «legislação» sobre os processos, facto que garante ser o multimedia um lugar de experimentação por excelência.

    O algoritmo base de «O Lagarto do Âmbar» assenta na exploração técnica exaustiva, quer dos equipamentos, quer dos actores. Desse modo se procuraram novas variáveis plásticas, com níveis de maturação idênticos, susceptíveis de receberem um tratamento contrapontístico. Esse número finito de elementos, esse «léxico básico» foi definido e seriado (sempre de acordo com o princípio da exploração da plasticidade intrínseca de cada parte), de modo que toda a construção do espectáculo possa seguir o paradigma da composição musical que,  igualmente, consiste na gestão de um número finito de elementos. A «partitura» do espectáculo, construída dessa maneira, opera a re-construção do «enredo do drama» com as suas zonas de sentido objectivo, cargas emocionais, estímulos visuais e sonoros, etc.). É esta construção que se dá ao espectador, a quem se propõe o exercício lúdico de a seguir.

    Uma grande parte do trabalho de video deste espectáculo foi construída sobres processos técnicos que correspondem a uma utilização não ortodoxa dos equipamentos, que os «reduziu a estado bruto», ao nível de «gerador de valores plásticos». Neste sentido, trata-se de uma exploração plástica estrita, em que varia apenas o material em si, e que não pode, evidentemente, ser «travada» pelas 'normas' do equipamento. Talvez se pudesse dizer que há «avarias boas» ou «produtivas», que geram resultados que, em limites próprios podem ser manipulados com algum grau de controle sobre os resultados: em limite, uma câmara de video com «regulações anómalas» pode ser tão interessante como uma caixa de lápis de cores, etc..

    A velocidade a que as imagens «tecnicamente perturbadas» se produzem, induz uma exploração formal vertiginosa, que será mais ou menos consequente, de acordo com a disciplina do raciocínio e a velocidade de escolha ou decisão, e também da concisão da própria ideia prevalecente, que, no fundo, determina tanto os pontos de escolha, como a coerência da construção. Na medida em que só pode ser «detectado» pelo rigor do raciocínio, a ideia de objecto coerente ganha aqui uma dimensão própria, pois cedo se torna visível a que ponto o objecto depende do seu contexto.

    É preciso, igualmente, confessar o fascínio que os meios tecnológicos exercem sobre o criador/explorador. Na base desse fascínio, estão duas ordens de motivações igualmente interessantes: por um lado a contemporaneidade, pelo prazer irresistível da apropriação da produção industrial da época, de marcar o seu tempo e, por outro, o jogo da surpresa e da a re-catalogação ou re-codificação pessoal das tecnologias básicas dos materiais, de acordo com a zona de resultados produzido. No fundo trata-se apenas do alargamento do campo do experimentável e do exprimível, e do aprofundamento e classificação da experiência vivencial (coisa em que os artistas são exactamente como as outras pessoas, nomeadamente os técnicos...).

    Aceitando-se estas ideias, tecnológico ou não, o processo de criação artística mantém-se o que sempre foi: um processo de mediatização paradoxal do real, através da re-composição dos elementos da realidade, pela transmutação simbólica dos materiais, sempre com a mimesis como elemento recorrente.

     

    A forma rende a ideia

     

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    A obra de arte acaba assim por existir no centro de uma teia de inter-dependências, como uma (e apenas uma) das "transmutações" possíveis dos seus materiais constituintes. Em cada momento da elaboração do objecto artístico, e perante cada media (ou suporte), o artista é colocado na situação de ter de escolher entre aplicar regras e/ou continuar a explorar, sendo as sucessivas opções tomadas de acordo com a linha geral da construção. A ideia de explorar mais, enquanto processo disciplinado de construção, tem implícita a procura da plasticidade específica que a obra requer. O artista confronta-se com a capacidade de, através das operações de manipulação, o media  gerar a sua própria plasticidade, e com a necessidade de a (re)investir na criação/gestão de sentido da obra. Há como que uma «deslocação» do sentido interpretativo do olhar sobre a obra: de verificador (na medida em que, em cada instante, se controla o rumo que a construção está a levar), o olhar do artista passa a reconhecedor (na medida em que se dispõe a aceitar novos valores, mesmo que inesperados) e, finalmente, a antevisor (pois coloca-se-lhe, de imediato, a questão do como, em que medida, o sentido da sua obra pode ser alterado, posto em perigo pela variação da performance tecnológica estrita. Poderia então dizer-se que, quanto mais meios são utilizados e maior é a complexidade da obra, maior é o seu grau de dependência tecnológica: da tecnologia e dos seus imprevistos. Portanto, a sua perecibilidade e, em limite, a sua própria existência têm obrigatoriamente de ser consideradas à partida. Por outro lado, quanto mais meios forem utilizados, mais se tenderá para uma situação de «obra de arte total» com os seus problemas linguísticos e formais próprios. E quanto mais total for a obra, ou seja, quanto mais o resultado transcender os elementos individuais, mais ela é sensível às variações, às diferenças de fase, numa palavra, ao comportamento recíproco - e, já agora, à fiabilidade - dos contributos individuais de cada tecnologia e de cada media.

    (Poderíamos especular indefinidamente procurando saber se as obras de arte contemporâneas, criadas a partir de suportes tecnológicos sofisticados, são mais ou menos perecíveis, mais ou menos dependentes do seu suporte, do que as outras. Aparentemente tudo leva a crer que, a este respeito, as coisas são o que sempre foram: por mais rudimentar que seja o suporte de uma obra de arte, não há maneira de evitar essa dependência. Na realidade, desde sempre os artistas se apropiaram de "zonas" de tecnologia, que incorporam no seu trabalho. O nosso século assistiu siderado às sucessivas vagas tecnológicas e às consequentes (e inevitáveis) rupturas estéticas.  Tanto quanto se sabe, as previsões apocalíticas sobre a eminência do «fim da arte» têm-se mostrado menos dignas de crédito que um vulgar horóscopo.)

    No fundo, a direcção foi já apontada por Eco, quando diz que a única forma de autenticidade possível no artista é inventar a regra da sua obra enquanto a faz, e enquanto a faz, escolher e interrogar o material com que a faz. Apesar de tudo, a utilização indiscriminada de meios tecnológicos é apenas uma parte da totalidade dos media (ou suportes) que a criação artística se habituou a gerir, o que deixa pensar que, afinal, nada mudou no campo da formulação artística e que, como diria o Professor Hermes(*) - se falasse sobre estas coisas -, «a obra de arte, na sua unidade, é sempre divísivel em espírito e matéria».

     

     

     

     

     

    (*) personagem de 'O Lagarto do Âmbar'