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Deseja-se Mulher

  • a rotura formal em «deseja-se mulher»

    texto  para o programa de deseja-se mulher

    «No ano de 1927, em Madrid, comecei a trabalhar uma peça de teatro e na qual a palavra «Unidade» fosse o grande motivo. Como porém não era um ensaio o que me propunha especular com essa palavra que reunisse a todos em legítima humanidade, mas sim um espectáculo de teatro onde comunicasse imediatamente com os públicos, depressa a palavra «Unidade» foi completada pelas de «Tragédia da Unidade».

    Contudo, tanto «Unidade» como «Tragédia da Unidade» são mais uma expressão geométrica de um sentido geral ou um subtítulo, do que representam a emoção desse sentido geral que a arte se propõe revelar.

    O trabalho prosseguia e em breve encontrava a expressão «Direcção Única» sinónimo de «Unidade», mas ainda desviado do que importa num título de teatro. Entretanto, «Direcção Única» satisfazia inteiramente o necessário para uma indicação gráfica do assunto e destas palavras me servi para ir preparando a atenção para o teatro que eu me propunha apresentar.

    Mas na minha mesa de trabalho surgia uma novidade: era materialmente impossível, dentro da aceitação que o público ainda tem do teatro, conduzir o assunto reunindo-o em uma única obra. Explico: verdadeiramente eram dois os protagonistas — a colectividade e o indivíduo. Desejando eu manter-lhes a equivalência de valores, arrastar-se-ia de tal maneira a acção por causa da dependência em que estão um do outro, que o público se desorientaria em vez de ser servido. Em vista disto, o meu trabalho separava-se maquinalmente em duas obras distintas, vivendo por si cada uma delas, embora respirando ambas a mesma atmosfera. Numa tratei do indivíduo separadamente da colectividade, isto é, a pessoa humana colocada exactamente diante do seu caso pessoal, o indivíduo encarando individualmente o seu problema pessoal da Ordem na outra, a colectividade sofre o inevitável atrito de cada um dos seus indivíduos, até que por desespero geral ou chamemos-lhe necessidade fatal, todos os indivíduos se submetem ao comum imediato e acabando esse movimento colectivo, imperioso e tirânico, por estabelecer o novo ritmo da sociedade e seus indivíduos.

    A primeira destas duas obras recebeu o título «Deseja-se Mulher»; a segunda é o «SOS»[1].

     

    Considero em «O MEU TEATRO» o meu melhor exemplo no exercício da peça «DESEJA SE MULHER», como desnudamento da necessidade em cena. Sobre o mais simples dos sueltos jornalísticos, não passa neste nenhuma intriga. Deste modo fica mais evidente que toda a acção está constantemente negada. Se não estivesse constantemente negada a acção, não permitiria apurar a necessidade. Ora «DESEJA-SE MULHER» é exclusivamente necessidade. Nenhuma das personagens entra em intriga, o que em cada um faz mais flagrante a necessidade de ser mais ou menos dignidade. Esperei em vão que a crítica o anotasse: não há competição em «DESEJA-SE MULHER[2].

     

    Com estes textos de Almada se inicia um conjunto de reflexões sobre o espectáculo que agora se apresenta. Estas reflexões apontam claramente para uma rotura formal no teatro de Almada Negreiros, rotura que tem sido tão incompreendida como menosprezada.

    «Deseja-se Mulher» apresenta-se como um texto fragmentado, a que falta correlação entre os sete quadros dos seus três actos, pelo menos para quem o lê pela primeira vez. Essa aparente fragmentação é de tal forma desconcertante, que algumas críticas à anterior encenação[3] apontam o texto de Almada como não sendo merecedor do trabalho de o pôr em cena. Aprofundada a leitura, verifica-se que a fragmentação é apenas formal, pois existe um fio condutor, de tal maneira forte, que o texto se transforma numa tese existencial, num testemunho de «uma forma de estar na vida»: «nunca me apresentei em público senão como pessoa de arte. Mas pretendo que na pessoa de arte não se separe a obra da sua coerência com a atitude humana que arte representa. Arte é sobretudo atitude universal da pessoa humana.»[4].

    É, sobretudo, a concepção formal do texto, e não o seu assunto (se tivermos em conta as intenções expressas pelo Autor) que origina os maiores problemas de leitura. O teatro contemporâneo deste «Deseja-se Mulher é, na sua maior parte, tributário da estética naturalista, apesar de, por vezes, serem sensíveis outras influências as quais, no entanto, não tiveram repercussões significativas na cena portuguesa[5].

    A concepção e a estrutura do teatro de Almada, surgem em rotura com a prática teatral sua contemporânea. Esta rotura é detectável na pulverização da acção em «quadros», o que vai contra a lógica da continuidade da acção, criando uma estrutura segmentada em que, apesar de tudo, não é possível considerar que há justaposição de sketches, como acontece na Revista. Almada chamou uma vez «esta minha revista» a «Deseja-se Mulher, mas tal designação é imprecisa, apesar de — e este é outro ponto de rotura — não existir no texto um mecanismo explícito de identificação início/fim, que permita estabelecer que o último quadro é a conclusão lógica dos anteriores.

    Por outro lado, à luz das preocupações expressas por Almada, existe uma continuidade, perfeitamente lógica, desde o início até ao final. Para a encontrar torna-se necessário ler este texto, em cada um dos seus quadros, como uma parábola. O melhor exemplo de puro e admirável teatro são as palavras de Cristo (...)[6]. De facto, em «Deseja-se Mulher» Almada enuncia um paradoxo: a fatalidade (Vampa é chamada Fata pelo Freguês) está contra a felicidade e a felicidade possível é uma caricatura de si pró-pria. O sentido trágico enunciado na fórmula 1 +1=1 anula-se na enigmática parábola da Sereia do último quadro da peça.

    Esta preocupação existencial, este existencialismo avant la lettre é, porventura, o aspecto mais interessante deste texto que, sem o saber, roça a genialidade. Porém, a não continuidade explícita da acção não impede que este texto seja o que é: uma tragédia, entendendo-se este termo no seu sentido mais restrito. A tragédia do Homem, incapaz de acreditar no sentido único que descobriu para a vida: «nada, o que mais há neste mundo é nada», e que se rende por fim à lógica do social, resumida no último quadro.

    Consuma-se assim outra rotura formal: a do género tragédia com a forma «Deseja-se Mulher». Fica assim evidente que se está em presença de um momento ímpar do teatro português.

     

     

     

    [1] Almada Negreiros, NOTICIA SOBRE UM ACTO DE TEATRO QUE A SEGUIR SE PUBLICA, in Sudoeste n.° 2, Outubro de 1935.

    [2] Almada Negreiros, O MEU TEATRO, in Obras Completas, Vol. 3, Ed. Estampa, 1971.

    [3] Encenação de Fernanda Lapa, na Casa da Comédia, em 1972.

    [4] Almada Negreiros, ORPHEU 1915/1965 (Ed. Ática, Lisboa).

    [5] Exceptuam-se. é claro, as breves experiências teatrais dos simbolistas que, após Jarry, estão na origem do teatro dos dadaistas, dos futuristas e dos surrealistas. De qualquer modo, registe-se cronologicamente a existência dos seguintes textos: 1986 — Ubu Roi, de Jarry; 1913 — O Marinheiro, de Fernando Pessoa; 1917 — As Maminhas de Tirésias, de G. Apollinaire; 1921 — O Coração de Gás, de Tristan Tzara; 1929 — O Percevejo, de V. Mayakovsky; 1930 — Esta Noite Improvisa-se, de Pirandello.

    [6] Almada Negreiros, PIERROT E ARLEQUIM, in Obras Completas, Vol 3, Ed. Estampa, 1971.

     

     

    Texto publicado no programa de Deseja-se Mulher. Ed ACARTE, Gulbenkian, Lisboa, 1984. 

     

     

     

     

    1984